sexta-feira, 10 de maio de 2019

Rubem Alves. Por uma educação romântica. Campinas: Papirus, 2002, p. 82-4 (com adaptações).

  1. Uma aula é como comida.
  2. O professor é o cozinheiro.
  3. O aluno é quem vai comer.
  4. Se a criança se recusa a comer, pode haver duas explicações.
  5. Primeira: a criança está doente.
  6. A doença lhe tira a fome.
  7. Quando se obriga a criança a comer quando ela está sem fome, há sempre o perigo de que ela vomite o que comeu e acabe por odiar o ato de comer.
  8. É assim que muitas crianças acabam por odiar as escolas.
  9. O vômito está para o ato de comer como o esquecimento está para o ato de aprender.
  10. Esquecimento é uma recusa inteligente da inteligência.
  11. Segunda: a comida não é a comida que a criança deseja comer: nabo ralado, jiló cozido, salada de espinafre...
  12. O corpo é um sábio: não come tudo o que jogam para ele, mas opera com um delicado senso de discriminação.
  13. Algumas coisas ele deseja.
  14. Prova.
  15. Se são gostosas, ele come com prazer e quer repetir.
  16. Outras não lhe agradam, e ele recusa.
  17. Aí eu pergunto: “O que se deve fazer para que as crianças tenham vontade de tomar sorvete?”.
  18. Pergunta boba.
  19. Nunca vi criança que não estivesse com vontade de tomar sorvete.
  20. Mas eu não conheço nenhuma mágica que seja capaz de fazer que uma criança seja motivada a comer salada de jiló com nabo.
  21. Nabo e jiló não provocam sua fome.
  22. (...)
  23. As crianças têm, naturalmente, um interesse enorme pelo mundo.
  24. Os olhinhos delas ficam deslumbrados com tudo o que veem.
  25. Devoram tudo.
  26. Lembro-me da minha neta de um ano, agachada no gramado encharcado, encantada com uma minhoca que se mexia.
  27. Que coisa fascinante é uma minhoca aos olhos de uma criança que a vê pela primeira vez!
  28. Tudo é motivo de espanto.
  29. Nunca esteve no mundo.
  30. Tudo é novidade, surpresa, provocação à curiosidade.
  31. Quando visitei uma reserva florestal no Espírito Santo, a bióloga encarregada de educação ambiental me contou que era um prazer trabalhar com as crianças.
  32. Não era necessário nenhum artifício de motivação.
  33. As crianças queriam comer tudo o que viam.
  34. Tudo provocava a fome dos seus olhos: insetos, pássaros, ninhos, cogumelos, cascas de árvores, folhas, bichos, pedras.
  35. (...) Os olhos das crianças têm fome de coisas que estão perto.
  36. (...) São brinquedos para elas.
  37. Estão naturalmente motivadas por eles.
  38. Querem comê-los.
  39. Querem conhecê-los.
  40. Rubem Alves

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