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terça-feira, 1 de setembro de 2015

CRÔNICA - UM OLHAR SOBRE O COTIDIANO

Ser cronista – Clarice Lispector
Sei que não sou, mas tenho meditado ligeiramente no assunto. Na verdade eu deveria conversar a respeito com Rubem Braga, que foi o inventor da crônica. Mas quero ver se consigo tatear sozinha no assunto e ver se chego a entender.
Crônica é um relato? É uma conversa? é o resumo de um estado de espírito? Não sei, pois antes de começar a escrever para o Jornal do Brasil, eu só tinha escrito romances e contos. Quando combinei com o jornal escrever aqui aos sábados, logo em seguida morri de medo. Um amigo que tem voz forte, convincente e carinhosa, praticamente intimou me a não ter medo. Disse: escreva qualquer coisa que lhe passe pela cabeça, mesmo tolice, porque coisas sérias você já escreveu, e todos os seus leitores hão de entender que sua crônica semanal é um modo honesto de ganhar dinheiro. No entanto, por uma questão de honestidade para com o jornal, que é bom, eu não quis escrever tolices. As que escrevi, e imagino quantas, foi sem perceber.
E também sem perceber, à medida que escrevia para aqui, ia me tornando pessoal demais, correndo o risco daqui em breve de publicar minha vida passada e presente, o que não pretendo. Outra coisa notei: basta eu saber que estou escrevendo para jornal, isto é, para algo aberto facilmente por todo o mundo, e não para um livro, que só é aberto por quem realmente quer, para que, sem mesmo sentir, o modo de escrever se transforme. Não é que me desagrade mudar, pelo contrário. Mas queria que fossem mudanças mais profundas e interiores que então viessem a se refletir no escrever. Mas mudar só porque isto é uma coluna ou uma crônica? Ser mais leve só porque o leitor assim o quer? Divertir? Fazer passar uns minutos de leitura? E outra coisa: nos meus livros quero profundamente a comunicação profunda comigo e com o leitor. Aqui no Jornal apenas falo com o leitor e agrada-me que ele fique agradado. Vou dizer a verdade: não estou contente. E acho mesmo que vou ter uma conversa com Rubem Braga porque sozinha não consegui entender.
   Crônica publicada em 22 de junho de 1968 pelo Jornal do Brasil.
Já nessa segunda publicação, Clarice utiliza da metalinguagem ao falar da crônica em uma crônica. É interessante como ela busca se entender com seu texto no jornal, como a autora tem medo de se expor demais e de falar de temas relevantes, e não “bobagens”. Mas é interessante destacar quando ela fala que não possui um dialogo consigo mesma, quando percebemos em tantas crônicas que ela busca seu passado, e muitas vezes sua identidade, através dos textos. Talvez nem ela percebesse como dialogava consigo mesma.
As crônicas que Clarice escreveu para o jornal do Brasil estão reunidas no livro “A descoberta do Mundo”.
Bibliografia:  A Metalinguagem nas Inquietações Cronísticas de Clarice Lispector; Érica Michelline Cavalcante Neiva. Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
A CRÔNICA DE CLARICE LISPECTOR EM DIÁLOGO COM SUA OBRA
LITERÁRIA – Nícea Nogueira. Disponível aqui
Revisado por: Pedro Dalboni.


A crônica é um dos gêneros mais dinâmicos que existem.  Tanto o jornalismo quanto a literatura reivindicam esse tipo de escrita. Ela se torna, ao final, um gênero autônomo, que possui aspectos de ambos. 
]A crônica se mostra temporal, factual, e busca cada vez mais se tornar independente em toda sua narrativa. Ela é difícil de definir, difícil de escrever, mas é um dos textos que aproximam mais o leitor do escritor. Inicialmente publicada em jornais e revistas, mais tarde se rendeu a internet e se popularizou.
Segundo estudiosos, a crônica remonta a narração de fatos históricos, na Idade média, tendo como principal nome Fernão Lopes, que em 1438, teve a missão de escrever a história de Portugal.  No Brasil, a primeira aparição do gênero é associada à carta que Pero Vaz de Caminha encaminhou aos portugueses, atestando a sua chegada ao Brasil e contando sobre as belezas na nova terra. Os conquistadores, jesuítas, narravam aos portugueses o que encontravam pelo Brasil, sempre se baseando na temporalidade e na linguagem literária em suas cartas.
A crônica sempre foi escrita no Brasil, em sua maioria, por escritores de romance e poesia. Desde o inicio, esse gênero de texto foi adquirindo autonomia estética. Machado de Assis, João Ubaldo Ribeiro, João do Rio, Carlos Drummond de Andrade, Rubem Braga, Vinicius de Moraes, Rachel de Queiroz, Fernando Sabino, Clarice Lispector tiveram seu espaço nos jornais para inserirem a sua opinião, suas experiências sobre o cotidiano atual, sobre suas expectativas e sonhos. O texto muitas vezes torna-se quase um diário, em que o cronista possui a liberdade de escrever sobre qualquer tema, a sua maneira.  Ela possui expressão poética, expressiva e metalinguística.

Clarice se rende à Crônica.
Foi em 1967 que Clarice Lispector foi convidada pelo editor Alberto Dines, para escrever uma coluna semanal no caderno B do tradicional Jornal do Brasil. Durante 6 anos, Clarice escreveu crônicas com aspectos ficcionais e autobiográfico. São textos publicados a cerca de 50 anos atrás que possuem um ar de atualidade, um dos aspectos que foge da “temporalidade” designada pela crônica. Os textos de “Clarice” muitas vezes são atemporais e acabam sendo muito atuais.
Em suas crônicas, Clarice conta feitos de sua vida, partilha um pouco sobre as dificuldades de escrevê-las, critica e observa a sociedade ao seu redor.  Clarice fala de sua vida cotidiana, de sua infância, dos lugares em que morou. A autora, principalmente, questiona sua identidade, busca ser breve, subjetiva, e, muitas vezes, acaba publicando fragmentos de livros que estava escrevendo.  Sua escrita, assim como seus livros, possui um estilo pessoal e introspectivo, que acaba conquistando o leitor. A autora também acaba por desenvolver a metalinguagem, ao falar de sua própria escrita, abordar seu modo de escrever e suas dificuldades.

Para exemplificar, selecionei duas crônicas de Clarice: “Chacrinha” e “Ser Cronista”. Não gosto de analisar muito Clarice. 

Ela é única e seus textos já falam o que é necessário ser dito.

“Chacrinha” – Clarice Lispector
De tanto falarem em Chacrinha, liguei a televisão para seu programa que me pareceu durar mais que uma hora.
E fiquei pasma. Dizem-me que esse programa é atualmente o mais popular. Mas como? O homem tem qualquer coisa de doido, e estou usando a palavra doido no seu verdadeiro sentido. O auditório também cheio. É um programa de calouros, pelo menos o que eu vi. Ocupa a chamada hora nobre da televisão. O homem se veste com roupas loucas, o calouro apresenta o seu número e, se não agrada, a buzina do Chacrinha funciona, despedindo-o. Além do mais, Chacrinha tem algo de sádico: sente-se o prazer que tem em usar a buzina. E suas gracinhas se repetem a todo o instante — falta-lhe imaginação ou ele é obcecado.
E os calouros? Como é deprimente. São de todas as idades. E em todas as idades vê-se a ânsia de aparecer, de se mostrar, de se tornar famoso, mesmo à custa do ridículo ou da humilhação. Vêm velhos até de setenta anos. Com exceções, os calouros são de origem humilde, têm ar de subnutridos. E o auditório aplaude. Há prêmios em dinheiro para os que acertarem através de cartas o número de buzinadas que Chacrinha dará; pelo menos foi assim no programa que vi. Será pela possibilidade da sorte de ganhar dinheiro, como em loteria, que o programa tem tal popularidade? Ou será por pobreza de espírito de nosso povo? Ou será que os telespectadores têm em si um pouco de sadismo que se compraz no sadismo de Chacrinha?
Não entendo. Nossa televisão, com exceções, é pobre, além de superlotada de anúncios. Mas Chacrinha foi demais. Simplesmente não entendi o fenômeno. E fiquei triste, decepcionada: eu quereria um povo mais exigente.”
Crônica publicada em 1967 pelo Jornal do Brasil.
O que podemos perceber nessa crônica de Clarice, escrita em 1967, é como ela conversa com a atual programação da televisão aberta brasileira.  A autora censura Chacrinha de uma maneira ácida e sem medo de fazer a sua critica. Clarice sempre se mostrou autêntica em suas colocações, e suas análises possuem fundamento e reflexões.

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